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Este artigo buscou examinar o relato de experiência de um processo psicoterapêutico em Brainspotting e foi feito por uma psicóloga de uma instituição que atende pessoas em situação de vulnerabilidade econômica. 

O envio do relato foi pré-requisito para o processo de seleção de bolsas de estudo para participar da fase 2 da Formação em Brainspotting. Para evitar a identificação do paciente e preservá-lo, seus dados serão alterados.

Sobre o Brainspotting:

Brainspotting é uma metodologia de base cérebro-corpo-relacional, desenvolvida e ampliada por David Grand, PhD e terapeuta nova-iorquino com vasta experiência em trabalho com traumas. Ela articula o conhecimento dos processos de memória e autorregulação cerebral com a expressão corporal e com a perspectiva relacional da psicoterapia para produzir o melhor resultado terapêutico. Isso promove a autonomia das pessoas sobre seu próprio processo de cura.

Por se tratar de uma terapia que dá suporte ao processo natural de autorregulação do sistema nervoso, os resultados se destacam quanto, ao tempo de resposta, a profundidade e a generalização dos resultados alcançados. 

Sobre a formação em Brainspotting e a Bolsa de Estudos:

A Formação em Brainspotting é sistematizada no mundo todo a partir das diretrizes da Brainspotting Training Inc. No Brasil, uma das pessoas autorizadas para oferecer esse treinamento é Daniel Gabarra. Ele é graduado em psicologia pela UFSCar e sempre se preocupou com o compromisso social da psicologia. Devido a isso, foi oferecida a Bolsa de Estudos para a formação em Brainspotting, a fim de permitir o acesso dessa metodologia a populações que tradicionalmente não teriam. 

Inicialmente, a bolsa era oferecida apenas a profissionais da psicologia vinculados ao SUS, SUAS e ONGs, mas em 2020 ela foi ampliada para psicólogos negros, transsexuais, indígenas, entre outras populações que historicamente vivenciam a negação de seus direitos sociais1.

(nota de rodapé 1 do tipo parar sobre o 1 e aparecer o texto.) Para saber mais acerca do programa de bolsas, acesse: https://danielgabarra.com.br/bolsa

Relato de Experiência:

Serão utilizados os registros feitos pela profissional em atendimentos realizados pelo Instituto Psicologia Para Todos, entidade sem fins lucrativos que atende pessoas em vulnerabilidade econômica e social em Serra/ES. As frases entre aspas ora são da psicóloga, ora da paciente.

A paciente, Ana Júlia (nome fictício), tem 55 anos, é moradora de um bairro da periferia, casada há 38 anos e mãe de duas filhas, uma com 34 e outra com 32 anos de idade. Ela trabalha como atendente de farmácia de um município vizinho, e exerce essa atividade em desvio de função, já que foi contratada pela empresa de serviços de limpeza como copeira.

O primeiro encontro foi realizado no Plantão Psicológico online. Neste momento, ela relatou que tem “um quadro de depressão há mais de 30 anos, logo após o nascimento da primeira filha. Começou a ter tonturas, dores de cabeça e no corpo, além de nervosismo” . Na ocasião, ela foi levada para a Santa Casa de Misericórdia de Vitória/ES, tendo sido atendida por vários médicos no pronto atendimento. Segundo ela, “foi encaminhada para o neurologista e em seguida para um psiquiatra, sendo diagnosticada com depressão crônica”. Ela contou que fez tratamento psicoterápico com diversos profissionais, que não percebia resultado e que, portanto, tinha interrompido tudo. 

A paciente relatou usar as seguintes medicações: Clonazepam, Amitriptilina e Nortriptilina. Ela disse que “usou 17 tipos de medicações, não lembrando dos nomes, mas afirma que eram muitos e foram diminuindo com o tempo”.

Durante essa escuta inicial, ela se apresentou como uma pessoa bem humorada, com autocuidado e higiene preservados. Seu discurso, bem articulado, foi marcado por um tom depreciativo sobre si e sua vida. Repetiu várias vezes que não era capaz e que não conseguia:  “tudo é difícil comigo, nada dá certo, não vai mudar” . Mesmo que em um tom de brincadeira, ela usou várias vezes tais termos, enquanto falava e meneava a cabeça como quem está negando.

Sobre as relações familiares, mantendo o mesmo tom, falou positivamente apenas da relação com as filhas, pontuando categoricamente: “pelo menos isso, né?”. Deixou claro a sua descrença em mudanças significativas na sua vida e nas pessoas ao pontuar que quando casou, “achou que a vida seria diferente, porém, mesmo hoje que o esposo não bebe mais, nem  joga, ela acredita que ele, na verdade, não mudou. Ele é assim porque ele está doente” .

Foi investigado se ela sofreu maus-tratos pelos pais na infância e no casamento. Ela relatou que foi maltratada pelos pais e pelo marido, “que mentia muito, se envolvia com jogos, trazendo dificuldades para família e muitas discussões, assim como ciúmes”. A paciente negou ter sofrido agressões físicas e confirmou ter vivido agressões verbais e psicológicas constantes. Ao contar sobre isso, a paciente disse “sentir muitas dores e uma angústia que não tem explicação”. 

A terapeuta interveio com as questões “A sua vida é muito ruim? Não há nada de bom? Seu relacionamento com suas filhas é ruim?”, com o objetivo de fortalecer os aspectos positivos e de mudança relatados durante a sessão. A paciente foi encaminhada do plantão para um atendimento regular com a mesma profissional e orientada a fazer exercícios de respiração como técnica de relaxamento.

No segundo atendimento, a paciente, ao responder como tinha sido sua semana, utilizou uma frase negativa em um tom de brincadeira: “tudo é muito difícil doutora, lidar com as pessoas, confiar, isso dói muito, minha vida é só sofrimento”. Nesse momento, foi sugerido o processamento em Brainspotting, no qual a psicóloga questionou em que parte do corpo a paciente sentia essas dores, ao que Ana Júlia responde: “no corpo todo”. Ela falava gesticulando e agitando muito braços e pernas.

Foi utilizado o manejo de Brainspotting de Janela interna, que propõe para o cliente identificar, com o auxílio do terapeuta, uma direção dos olhos em seu campo visual com a qual o foco ou queixa (dor e sofrimentos) e a sensação corporal (dor no corpo todo) se intensificam, o que é denominado brainspot ou posição ocular relevante. 

Esse processo visou favorecer a sustentação do foco na queixa, a fim de potencializar a auto varredura do cérebro-corpo e, com isso, auxiliar a regulação afetiva da rede de memória em foco. Também buscou-se como referência o nível de ativação da queixa, ou seja, o quanto ela se sentia mobilizada com a questão em uma escala de zero a dez, na qual zero é nenhuma mobilização/ativação e dez, a máxima que ela pode imaginar. Essa escala é uma adaptação da SUDS (Subjective Units of Distress Scale, em tradução livre: Escala de Unidades Subjetivas de Desconforto), proposta por Joseph Wolpe.

Ana Júlia relatou ter uma SUDS inicial de valor 10 e estava muito agitada ao começar o processamento. Falou que a culpa era dela: “eu sou complicada mesmo, não consigo”. Nesse momento, foi feita uma intervenção da terapeuta: “porque que é tão importante acreditar que você é difícil?”. Depois, a seguinte fala com o objetivo de psicoeducação: “permita que as lembranças, pensamentos, coisas que você ouviu… não é porque você ouviu isso muitas vezes… que é uma verdade absoluta, e que você pode mudar isso se quiser. Acolha o que vier nesse momento, seja gentil com você, abrace você mesma. Sinta-se acolhida nesse momento”.

A partir desse momento, a paciente entrou em um processamento mais profundo, com longos momentos de silêncio e, com isso, pôde-se observar que a agitação foi diminuindo. Ela continuou balançando a cabeça, como foi descrito na primeira sessão, mas foi possível perceber, aos poucos, um relaxamento do tônus do ombro e da postura da cabeça. Com passar do tempo, o corpo estava com uma postura diferente e mais relaxada. Nesse momento, a terapeuta verificou o valor de SUDS e perguntou o quanto a questão ainda mobilizava a cliente, que respondeu que estava em sete. Foi então sugerido que a paciente continuasse com olhar para aquele brainspot e “acolhesse o que viesse naquele momento”. 

Ao se aproximarem do do final da sessão, a paciente foi questionada novamente quanto ao valor de SUDS. Respondeu que era três e, com isso, foi proposta uma técnica de respiração em conjunto com a continuidade do manejo de Brainspotting de Janela Interna. Após um tempo observando as mudanças no tônus muscular, na diminuição do menear da cabeça e na respiração, a terapeuta verificou novamente quanto isso a mobilizava a paciente, que respondeu “que não, que naquele momento ela estava tranquila, não havia nada” .

A sessão foi finalizada e foi explicado à paciente que se ela sentisse “alguma coisa”,  poderia ficar à vontade para contatar a terapeuta. Foi avaliado neste momento se a paciente estava bem para o fechamento da sessão, e ela “falou com tranquilidade que no início foi muito difícil, mas que se sentia bem, sem entrar em detalhes” .

Na terceira sessão, a paciente já apresentava uma postura muito diferente ao ser questionada se a semana havia sido boa. Ela falou que “as pessoas em casa e no trabalho estão comentando que ela estava diferente. Será, doutora?”. Ao ser perguntada sobre o que ela achava, falou que “não sabia, que era tudo muito difícil… que a vida é muito difícil” .

Disse que tinha algo muito importante para falar, “uma lembrança, que ela teve durante a semana, de algo que aconteceu na infância e que ela nunca havia falado com ninguém, mas que precisava falar… e sentia um desejo incontrolável de falar sobre isso” . A terapeuta explicou que “às vezes essas coisas acontecem, às vezes as lembranças não vêm na sessão, mas depois”. Então, ela relatou que “no dia seguinte à sessão teve muita dor de cabeça pela manhã, mas que a dor foi diminuindo ao longo do dia e que tinha sido a melhor semana  sua vida”. 

Continuou contando sobre uma tentativa  de abuso na infância. Ao relatar essas lembranças, ficou muito agitada e se emocionou, ficando com os olhos vermelhos e chorando. Ana Júlia foi acolhida pela terapeuta, que lhe disse “que não tinha sido culpa dela, que o comportamento do tio… a responsabilidade pelo comportamento de um adulto é sempre do adulto, nunca da criança, e que aquele comportamento não tinha a ver com ela” . 

A paciente se estabilizou e passou a contar sobre sua vivência com os pais e os irmãos, que também a agrediram física e verbalmente: “eu apanhava por tudo, tudo era responsabilidade minha, tudo era minha culpa”. Falou de suas dificuldades de aprendizagem e de como isso era utilizado como motivo para apanhar sempre, e relatou que apanhava por “qualquer outra coisa”. Disse que era uma pessoa difícil. “Como confiar nas pessoas, mesmo nos irmãos? Quando casei, esperava que seria diferente a vida, o que não aconteceu”.

Foi questionado à paciente onde ela percebia essa desconfiança e insegurança no corpo. Disse que “mobilizava muito, fazendo com que sentisse um peso muito grande nos ombros, mas também outras partes do corpo”. Questionada sobre o valor de SUDS, respondeu que 10. Nesse processamento, foi possível perceber uma mudança significativa desde o início. Em vez de falar “quanto era difícil”, só perguntou “será que consigo?”. Ao longo do processo, diminuiu o menear da cabeça, o que sugeriu que estava mais relaxada. Ana Júlia pareceu mais entregue ao processamento, pois iniciou com um valor de SUDS dez e terminou com um zero. O valor zero persistiu mesmo quando lhe foi solicitado que entrasse em contato com qualquer mobilização que a questão ainda pudesse provocar nela. Ao final da sessão, ela disse que “foi muito bom, diferente da outra vez. Acho que é muito bom poder falar com alguém dos problemas e do que aconteceu”.

Nos quarto e quinto atendimentos, foram realizados novos processamentos com Brainspotting, tendo como foco o sentimento de culpa da paciente. Sempre latente em seus relatos, esse sentimento foi trabalhado no contexto de suas preocupações relacionadas à família, principalmente a sua irmã, que estava doente e que não podia, então, exercer o papel que costumava fazer de cuidadora da mãe delas.

No sexto atendimento, a paciente parecia bastante animada. Contou espontaneamente sobre suas mudanças, relatando que foi à consulta com a psiquiatra e que a médica observou diferença entre um atendimento e outro, como não precisar da ajuda da filha para falar, pois não chorava mais. A dosagem da medicação foi reduzida pela psiquiatra. 

Ana Júlia reforçou como as pessoas do trabalho e da família continuavam percebendo essa diferença. Durante o atendimento, a paciente foi menos enfática ao citar sua incapacidade, sugerindo uma mudança no padrão de comportamento, “de se julgar uma pessoa difícil, de que tudo é sua culpa e é que as coisas não mudam ou são quase impossíveis de mudar”. A paciente falou de medo, insegurança, desconfiança dos outros e de si mesma, entre outros sentimentos e comportamentos. 

 O manejo em Brainspotting, ao propor autorregulação a partir da sintonia dual, potencializado pela posição ocular relevante, fortaleceu a aliança terapêutica estabelecendo a confiança necessária para o relato da memória traumática. A paciente chegou a afirmar que “desde a primeira vez, se sentia mais leve e conseguia falar de coisas que ela nunca havia falado para ninguém, e como é bom fazer esse processamento sem precisar falar”. 

A paciente continua sendo atendida pelo Instituto Psicologia Para Todos e, apesar de apresentar um quadro que sugere humor rebaixado, tem se apresentado bem humorada durantes as sessões, com insights positivos em relação a si e comportamentos mais adaptativos. Ela relatou que estar grata pelo atendimento, que passou ter confiança no processo psicoterápico, e que estava satisfeita com o atendimento.

Alessandra de Freitas Dias de Jesus atua como Psicóloga Clínica, Terapeuta em Brainspotting; MBA em Serviço Social e Políticas Públicas pela Faculdade Cândido Mendes; Pós-Graduada em Saúde Coletiva pela FAVENI; Fundadora do Instituto Psicologia Para Todos, uma ONG criada em 2017 com finalidade de tornar acessível o atendimento psicológico às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social; Atuou durante 2 anos e meio na Secretaria de justiça do Estado do Espírito Santo (SEJUS). Hoje, além do atendimento clínico no Consultório e no Instituto, é Servidora Pública (DT), atuando no CRAS do Município da Serra-ES. 

Daniel Gabarra é especialmente um eterno aprendiz e acredita na melhora e cura tanto do sujeito quanto da humanidade. Nesse caminho ele se tornou Trainer em Brainspotting e PNL, Supervisor e Facilitador de EMDR, Especialista em Psicodrama, Terapeuta de AIM e constelação, flerta com Ayurveda e é graduado em Psicologia pela UFSCar.Tiago Noel Ribeiro é psicoterapeuta. Atuou quase 10 anos em serviços públicos de saúde, atualmente se dedica a clínica e a pesquisa de doutorado.