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MINHA PRIMEIRA EXPERIÊNCIA NO USO DO BRAINSPOTTING EM ATENDIMENTO CLÍNICO PSICOLÓGICO

Agostinho Cavalieri (CRP 04/13700)
(Psicólogo Clínico e Esportivo. Clínica há quase 30 anos em Belo Horizonte/MG)

Este texto foi escrito entre o final de novembro e meados de dezembro de 2021, logo após o curso de Fase 1 da formação em Brainspotting ministrada por Daniel Gabarra.

O artigo apresentado tem como objetivo relatar uma experiência de atendimento psicológico usando Brainspotting, no programa voluntário “Mães Solteiras em Situação de Vulnerabilidade Psicológica e Social”.

O atendimento relatado foi realizado à distância, por uma plataforma de videochamadas.

A paciente, que será chamada de Alice, é uma mulher jovem que teve uma gravidez inesperada. Tanto o contexto familiar, como o pessoal podem ser compreendidos como confusos, adoentados e organizados por um sistema de relações limitantes e abusivas.

Primeira Sessão

Alice tinha 25 anos quando me procurou para fazer psicoterapia. Era solteira, cursava Engenharia Ambiental em uma faculdade pública, morava em Contagem/MG e não trabalhava. Procurou o atendimento por indicação de uma colega. Na época, eu estava migrando do atendimento presencial para o online.

A cliente chegou com uma demanda de descontrole emocional, episódios de reações de raiva sem uma causa específica, relatos de abusos na infância e adolescência, crises de ansiedade, insônia, sintomas de pânico, traços de desregulação emocional, atenção deseducada, sintomas de fobia social e uma completa insegurança e desestabilização por conta de uma gravidez inesperada por meio de uma “ficada” ocasional.

Anteriormente, ao longo da sua vida, ela nunca tinha procurado atendimento psicológico nem psiquiátrico, porque seus familiares não acreditavam em todas as queixas e comportamentos atípicos dela. Quando criança e adolescente, poderiam ser consequências de problemas emocionais, mas julgavam como insuficientes para buscar acompanhamento psiquiátrico ou psicológico. Era como se fossem “coisa dela”, “frescura”.

A cliente apresentou perfil de vulnerabilidade socioeconômica, e só continuava seu curso porque era oferecido um programa de apoio social que contemplava transporte e alimentação para alunos carentes. Ao tomar conhecimento disso, eu decidi atendê-la voluntariamente. Perguntei se ela gostaria de ser atendida por um período limitado, porém sem custos. Ela aceitou prontamente.

Meus atendimentos voluntários para “mães solteiras” têm um número limitado de sessões, sendo uma sessão por quinzena, chegando a um total de seis sessões.

O contexto apresentado pela cliente, acrescido da necessidade de acolhimento urgente e da falta dos recursos para pagar um tratamento particular levaram-me a integrá-la. Também seria uma ótima oportunidade para eu utilizar os conhecimentos teóricos e práticos aprendidos no curso de formação em Brainspotting, Fase 1.

A minha percepção e os meus sentimentos sobre esse primeiro encontro foram de felicidade por ter a oportunidade de ajudar essa jovem que vinha em busca de socorro.

Ao entrar em contato, nesse primeiro momento, com a história de vida da cliente, senti uma breve apreensão sobre o que eu encontraria pela frente, porque tive um caso similar em que a cliente abandonou o processo sem muitas justificativas.

Eu me perguntei até quando passaremos por esse desinteresse e descrença das famílias em relação aos problemas emocionais dos filhos. [não achei um jeito bom de dizer]

Segunda Sessão

No início da sessão, a cliente estava bastante agitada e ansiosa. Com o olhar para baixo, iniciava seus primeiros contatos comigo. Não olhava para a tela do aparelho. Procurei conduzir com uma fala mais pausada, um tom de voz ameno, demonstrando tranquilidade e satisfação em recebê-la. Procurei criar uma atmosfera mais tranquila. Perguntei se ela havia conectado à internet com facilidade e se estava confortável. Perguntei se ela estava com sede. Ela logo respondeu que sim e que conectou bem à internet. Falei para ela pegar um pouco de água e assim ela fez.

Daí por diante, ela foi se soltando um pouco mais na poltrona que estava assentada na casa dela e foi se acalmando. Perguntei se ela já tinha feito terapia online anteriormente. Ela disse que não, que era tudo pela primeira vez, e que também nunca ninguém havia falado para ela que seria bom ela fazer terapia, e que sempre os familiares diziam que “ela não tinha nada” e que os “problemas eram invenção dela”.

Contou na sequência que uma amiga tinha compartilhado com ela que estava em terapia e se sentindo bem melhor que antes. Assim, ela tomou coragem para procurar este apoio e ver como era. Procurei verificar se ela estava com privacidade em casa. Ela disse que sim.

Então tomei um tempo para fazer psicoeducação, explicando o que é uma terapia, como funcionavam as sessões (tempo, metodologia, sigilo, dias certos das sessões etc.) e que poderiam ser usadas técnicas corporais para o desenvolvimento dos trabalhos com bom funcionamento à distância. A seguir, iniciamos a anamnese.

Durante a anamnese, a cliente apresentava-se muito apreensiva, com fala rápida e um tanto desorganizada. Os pensamentos estavam evidentemente acelerados. Naquele momento, entendi ser necessário trazê-la para um estado de calma para que ela pudesse ter um mínimo de regulação emocional para continuarmos a anamnese. Expliquei calmamente os benefícios da respiração e seu efeito calmante e a convidei para fazer os exercícios respiratórios, pois seria algo bom para ela naquele momento, e ela assentiu em fazê-los. Entrei com exercícios respiratórios básicos e aterramento simples (associação com o aqui e o agora), para ela sentir uma desaceleração física e mental. E assim foi feito, com imediato resultado positivo, com a cliente expressando: “puxa… nunca senti que podia me acalmar, pelo menos por um minuto… só respirando e colocando os pés no chão!”

Assim, dei continuidade a esta entrevista inicial. Pedi que me falasse um pouco sobre sua família e como foi sua trajetória para buscar sua formação superior. A cliente relatou que morava com a mãe (professora da rede pública) e o padrasto (aposentado e violento). Tem dois irmãos mais velhos e casados. O pai biológico é vivo, morou com ela até os 2 anos de idade e atualmente era separado da mãe, além de ter um péssimo relacionamento com a cliente e com a mãe dela. Ela relatou que o pai é doente mental diagnosticado (esquizofrenia) e que bebia muito, mesmo sem poder beber por conta de remédios, e que, quando não medicado, naquela época, batia nela e na mãe.

Então, a mãe se separou do pai biológico e algum tempo depois, ela se casou com uma outra pessoa também problemática e agressiva. Mas o padrasto tinha uma melhor relação com a cliente, apesar de tudo. Ela começou a ficar mais próxima do padrasto do que da mãe.

A cliente fez a observação sobre o comportamento diário da sua mãe. Professora de escola pública, todos os dias vinha com queixas sobre o trabalho, e era fria e agressiva. Alice comentou que, paradoxalmente, a mãe não cuidava dela e nem a incentivava nos estudos.

Perguntei se ela tinha irmãos. Ela disse que sim e começou a falar um pouco deles. A relação com os irmãos era sem muitas aproximações e às vezes com muitas discussões. E redirecionou a fala para a mãe. A cliente repetiu o relato que a relação com a mãe também não era das melhores, com episódios de abandonos físico e emocional, até porque a mãe trabalhava muito como professora e aparentemente descontava nela e nos irmãos suas frustrações do trabalho público.

A cliente citou que a mãe parecia guardar um rancor de crianças e as tinha como ‘inimigas”. Contou que achava que devia ser por causa dos alunos dela e por ter crescido em um lar abusivo e desestruturado. Relatou que sofreu ao longo da vida violência física, violência verbal (pelos pais), além de tentativas de estupro, abuso sexual (por pessoas de fora), mas pouco falava sobre isso com seus pais.

Relatou rapidamente sobre uma tentativa de abuso sexual, aos 9 anos, por parte de um amigo da irmã (um rapaz de 30 anos) e antes, aos 8 anos, por um professor em aulas de natação na escola, entre outros episódios na escola com colegas de sala. Não quis entrar em detalhes naquele momento. Eu percebia sinais e sintomas claros de Estresse Pós Traumático. Seguindo a sessão, eu apenas a deixava falar de acordo com sua vontade, e estava fluindo bem.

Daí perguntei sobre relacionamentos afetivos (namoros). Citou não ter tido relacionamentos de namoro sério por não confiar em homem nenhum, mas não sabe o porquê dessa desconfiança. Suspeitava que era por causa da relação com o pai, professores, com o padrasto e das brigas com o irmão. Questionada como se sentia em estar ali com um terapeuta do gênero masculino, ela sorriu e disse que “estava ali também para lidar com suas dificuldades” e que, por ser online, facilitava. Nunca foi de ter muitos amigos, saía pouco porque preferia ficar em casa, e se sentia ansiosa demais perto de muita gente. Sempre que namorava era por pouco tempo e já terminava.

A cliente, então mais calma, começou a organizar sua narrativa. Falava sobre si de forma depreciativa e se culpando pela vida que levava. Revelou sentir-se só, que era muito insegura e começou a ficar mais em silêncio daí para frente, durante a sessão da anamnese. Resolvi encerrar esta sessão. Antes, sondei como ela estava se sentindo e se estava mais calma e tranquila. Ela disse que sim e que gostou de ter tido a sessão.

Terceira Sessão

Na terceira sessão, a cliente chegou pontualmente, com um semblante mais calmo, parecendo que já não era mais tão assustador estar em terapia. Eu a recebi com um largo sorriso, que foi timidamente correspondido e perguntei se ela estava bem acomodada. Estava curioso para saber de algum impacto positivo das reflexões provocadas, mínimas que fossem.

Perguntei como tinham sido os dias anteriores, ela deu uma pausa e começou a chorar. Permiti que ela soltasse sua emoção e logo que ela deu uma brecha, perguntei o que a fez chorar. Ela, novamente dando pausas longas, começou a dizer que não sabia porque tinha essas vontades de chorar repentinamente. Disse que se sentia boba e insegura com essas “vontades vindas do nada”.

Procurei explicar que, quando temos algumas situações não compreendidas ou não resolvidas dentro de nós, poderíamos ter essas vontades do nada. Ela compreendeu e disse que sim, que poderia ser isso e que ela sentia isso muitas vezes, mas que não tinha forças para falar sobre isso. Sinalizei positivamente, manifestando meu entendimento e aceitação do que ela compartilhava comigo e normalizei a situação, dizendo que tudo ali seria no tempo dela e da forma que se sentisse melhor.

Decidi, então, explicar a ela sobre traumas emocionais. Ela ouvia atentamente, com uma expressão de interesse.

Continuamos a sessão e, em um primeiro momento, eu não quis explorar nenhum ponto que ela trouxera na anamnese, apesar de haver vários assuntos relevantes para um início de terapia. Deixei a cliente à vontade para falarmos da semana e da sessão anterior. Ela se manteve mais calada. Falou um pouco dos seus anseios para o ano e de seus desejos que sua vida mudasse. Apontou que não entendia porque tinha rompantes de raiva. Ela demonstrava que não queria prosseguir falando de si e dos problemas.

Nesse momento, eu a fiz lembrar que eu havia explicado na primeira sessão que poderíamos usar alguns procedimentos e atividades nos quais usaríamos o corpo de forma tranquila e serena, através do movimento dos olhos e das sensações no corpo. Eu então perguntei o que ela estava sentindo naquele momento e ela respondeu que se sentia oprimida e angustiada.

Eu a levei à curiosidade de voltar a sua atenção para si e para seu corpo, procurando sentir onde no seu corpo estavam localizados esse aperto e essa angústia. Ela logo apontou para o peito. Eu expliquei que nosso corpo guarda as sensações sobre o que sentimos na vida. Ela ficou curiosa e aderiu àquele caminho. Comecei então a falar do Brainspotting.

Expliquei, então, como o criador do Brainspotting ajudou uma atleta em um dos atendimentos dele e como ela melhorou das dificuldades, e que isso aconteceu quando a atleta “achou” um ponto que ela estava fixando o olhar sem perceber, enquanto lembrava de algumas situações do passado dela. Assim, a atleta “ajudou” o próprio cérebro a cuidar dos seus traumas, sem se esforçar e sem sofrer novamente por causa daquelas lembranças, que poderiam causar dor.

Ela gostou daquilo e resolveu cooperar mais ainda. Expliquei o que era o Brainspotting e como faríamos aquela atividade, explicando o que era o SUDS (Escala de Unidade Subjetiva de Perturbação), como ela identificaria sua ativação ou mobilização de 0 a 10 e como usaríamos o SUDS para nos orientar na evolução daquela intervenção. À medida que ela ia compreendendo a metodologia, ia cooperando e então perguntava se, assim, não precisaria ser inquirida do passado e nem precisaria explicar os porquês e o como das coisas. Eu disse que sim, que não precisaria relatar se não desejasse. Já estávamos terminando a sessão, então preferi encerrar.

Durante essa sessão, eu estava mais confiante no processo que se seguiria nas próximas.

Quarta Sessão

Recebi Alice com um largo sorriso e ela prontamente retribuiu, depois se acomodou e iniciamos. Perguntei sobre a semana e ela disse que os dias eram iguais “dentro e fora dela”.

Então ela começou a, espontaneamente, trazer um assunto sobre os estudos e como conseguiu, com seu esforço e sem a ajuda da mãe, passar de ano na escola, ano após ano, até chegar ao ensino superior, sem apoio e só recebendo continuamente as cobranças da mãe, com frases depreciativas.

A mãe e o pai biológico não incentivavam e nem cuidavam do acompanhamento escolar. O padrasto era um pouco mais interessado. Ela não entendia o descaso da mãe, já que era professora. Quando a mãe tocava no assunto “estudo” era para depreciar, cobrar notas e nada mais. Perguntei como ela se sentia falando deste assunto e respondeu que seria a mesma angústia e opressão “no peito” do primeiro dia de conversa. Perguntei a intensidade de 0 a 10 do incômodo para saber o quanto esse tema a mobilizava, e ela respondeu 10. Voltei a falar do Brainspotting, e a orientei como se daria essa aplicação. Ela entendeu todo o processo e o tema escolhido foi o da sessão anterior: angústia e opressão por causa das dores da vida, da raiva, da insegurança e do desalento com tudo.

Optei naquela circunstância pela Janela Interna, na qual a cliente sinalizava que a queixa e intensificação da sensação aumentariam ou diminuiriam em determinado ponto nos eixos X e Y do campo visual, ao buscar o ponto da ativação (posição ocular onde ela se sentia em maior contato com a ativação provocada pelo tema).

Expliquei tudo a ela, como seria o atendimento, e comecei o rastreamento no eixo X, usando a Janela Interna. Ela entendeu e respondeu bem ao escaneamento. Fizemos todo o eixo X, com o incômodo aumentando no olhar pelo lado esquerdo. Fizemos então o escaneamento do eixo Y e o incômodo não aumentou, permanecendo na linha horizontal, quando ela fixou o olhar para a extrema esquerda. Pude detectar também que do lado direito ela tinha um ponto de recurso que diminuía a intensidade do incômodo. Daí, ao acharmos o ponto do Brainspotting, pedi a ela que fixasse o olhar naquela direção e naquele ponto na parede, e deixássemos o cérebro trazer o que tinha para trazer e apenas observaríamos o que viria. Poderiam demorar um pouco ou virem logo  as sensações, os sentimentos e os pensamentos, e que assim sendo, ela só observasse e, se quisesse, poderia relatar. Não foi difícil achar o ponto que ela começaria o processamento, porque ela entendeu bem as instruções e procurava cooperar com a percepção da sensação, que aumentava ou diminuía no escaneamento dos eixos X e Y.

Reforcei que não se preocupasse e, apenas se desejasse, poderia compartilhar comigo o que vinha em seu campo de consciência.  Assim, ela entrou em processamento e eu apenas acompanhava a “cauda do cometa”, expressão usada por David Grand para se referir à postura fenomenológica do terapeuta durante o processamento.

Alice fixou o olhar e, por um tempo de cerca de 8 minutos, ficou em silêncio. De repente, começou a se emocionar e chorar. Eu disse a ela que se permitisse chorar o quanto sentisse ser necessário e acolhesse o que seu cérebro estava trazendo… Assim foi, até que ela parou de chorar e começou a trazer algumas falas sobre ser culpada das coisas que acontecem com ela e sempre estar sendo alvo de alguém que quer tirar algo dela.

Então continuou o processamento, voltando a silenciar-se. Ficou mais um tempo calada com o olhar fixo no ponto que a mobilizava. Bocejou algumas vezes. De um momento para o outro, começou a dizer que a mãe dela não precisava ser assim com ela, e que ela sentia que não tinha culpa da forma que a mãe a tratava e que, se pudesse, teria reagido às muitas injustiças que a mãe cometeu, mas não conseguia. Falou isso com uma maior serenidade na voz.

Eu reforçava, apenas dizendo para ela permitir que seu cérebro continuasse trazendo o que teria que trazer, e que ficasse com isso.

Então, pedi a ela que percebesse em seu peito aquela angústia e opressão citadas no começo e se ainda estavam em 10. Ela, já surpresa, disse que estava bem mais leve e que estava em 3. Conduzi para o final da sessão, dizendo que retomaríamos na próxima sessão e que ela prestasse atenção em seus sonhos, porque o processamento continuaria acontecendo, e que os anotasse, se desejasse. Ela foi embora, desconectando da plataforma, bem equilibrada, após uma sessão de bons processamentos.

No final da sessão, pude perceber o quanto o Brainspotting pode fazer uma diferença positiva no desenvolvimento do processo terapêutico.

Quinta Sessão

Nesse atendimento, ela trouxe um fato sério, que me surpreendeu.

Já de início, ela trouxe a novidade da gravidez inesperada. Começou a relatar como ficou grávida e seu atordoamento e sua insegurança sobre o futuro como mãe solteira sem condições financeiras, além de como contaria para a família e o que faria com seus estudos.

Abalada naquele instante, Alice começou a contar como aconteceu a gravidez. Relatou que foi à uma festinha de uma colega, coisa rara segundo a cliente. Lá ela se empolgou, bebeu um pouco a mais, não estando acostumada, e “ficou” com um rapaz que foi bem sedutor, com uma conversa alegre e que fez a cliente sentir-se a pessoa mais bonita do mundo. Ela começou a ceder e a bebida fez com que ela ficasse mais à vontade. Ela relatou que não se lembra bem do que acontecera naquele dia. Só lembrava que foi para um quarto da casa e, dali por diante, lembrou que tinha transado com o rapaz muito rapidamente e que depois ele a deixou sozinha e ela não o viu mais.

Um mês depois, a menstruação dela atrasou e ela começou a sentir muita preocupação. Procurou a amiga e contou o que houve naquele dia e que a menstruação estava atrasada. A amiga então deu o número do rapaz e a cliente guardou, caso precisasse.

Naquele momento, a paciente queixou-se da angústia e, novamente, da opressão no peito.

Essa foi minha deixa para entrarmos em processamento no Brainspotting e começarmos. Ela pediu para olhar para aquele ponto anterior e eu concordei. Ela começou a olhar já dizendo: “Está 10 e parece que quero sumir…”. Eu já comecei a dizer para ela simplesmente deixar seu cérebro ajudá-la. Ela começou a chorar muito, perguntando a si mesma “o que faria com tudo que está acontecendo” e relatando que a mãe e o padrasto iriam brigar com ela quando soubessem.

Ao mesmo tempo que ia se culpando, começou a dizer que tinha forças e que iria enfrentar. Eu reforcei, dizendo que ela já tinha vencido tanta coisa na vida. Enfatizei que ela deixasse seu cérebro trazer os pensamentos e sentimentos. Ela balançou a cabeça concordando. Ficou novamente em um silêncio profundo por alguns minutos. Eu acompanhei pacientemente até ela voltar dizendo que não tinha culpa de ser sozinha e de ter raiva de tudo. Mais um tempo em silêncio. Eu repeti que ela não tinha culpa e que era muito forte. Ela ouvia, fixada no ponto. Dizia que iria ter o filho, que ele teria tudo que ela não teve e que ela venceria. Eu reforcei dizendo: “fica com isso.”

Alice ia mudando o semblante à medida que a sessão ia caminhando para o final. Perguntei sobre o SUDS e ela disse que não entendia o porquê, mas a angústia tinha acabado e a opressão também. Sorria timidamente, espantada. Então, finalizei a sessão, dizendo a ela que finalizaríamos nossos atendimentos na próxima sessão e que combinaríamos o futuro.

Sexta Sessão

Ela estava bem arrumada e com um semblante sereno. Contou que estava dormindo melhor e com mais calma, não tinha mais rompantes de raiva, sabia mudar os conteúdos das conversas em família, caso não fossem convenientes e que estava conseguindo planejar sua gravidez e seu futuro. Também relatou que não abandonaria a faculdade.

O pai da criança foi avisado e não trouxe problemas, dando total apoio, para a surpresa dela, pois acreditava que ele não a ajudaria em nada.

Com relação aos homens, ela continua com um “pé atrás”, mas sentindo-se mais segura, no que dependesse dela. Citou que não entendia bem o porquê de estar melhor e em tão pouco tempo. Eu expliquei como o Brainspotting pode ter ajudado.

Combinamos então um encontro virtual por mês, para dar uma manutenção até ela poder aderir a um acompanhamento particular comigo ou com outro profissional.

Eu estava com uma sensação boa de ter ajudado um ser humano que necessitava desse acolhimento, e, ao mesmo tempo, revigorado com a integração da minha prática terapêutica ao Brainspotting.

Observação final sobre a minha experiência:

O uso do Brainspotting foi surpreendente, pois eu sempre fui um terapeuta da fala, e essa experiência terapêutica me levou a um outro nível. O Brainspotting me fez dar novos significados à minha práxis, com resultados mais rápidos e satisfatórios. Com essa aquisição do conhecimento e habilidade no uso clinico do Brainspotting, aumenta, assim, minha competência e autoconfiança. Iniciou-se um processo interno de revisão dos meus olhares clínicos. Sem dúvida, de agora em diante, o leque de intervenção e adequação às demandas e diferenças individuais no ato clinico, que se apresentam no meu dia a dia profissional, podem ser encarados com uma maior sensação de segurança.

A força do vínculo cliente-terapeuta: um relato de experiência

Este artigo buscou examinar o relato de experiência de um processo psicoterapêutico em Brainspotting e foi feito por uma psicóloga de uma instituição que atende pessoas em situação de vulnerabilidade econômica. 

O envio do relato foi pré-requisito para o processo de seleção de bolsas de estudo para participar da fase 2 da Formação em Brainspotting. Para evitar a identificação do paciente e preservá-lo, seus dados serão alterados.

Sobre o Brainspotting:

Brainspotting é uma metodologia de base cérebro-corpo-relacional, desenvolvida e ampliada por David Grand, PhD e terapeuta nova-iorquino com vasta experiência em trabalho com traumas. Ela articula o conhecimento dos processos de memória e autorregulação cerebral com a expressão corporal e com a perspectiva relacional da psicoterapia para produzir o melhor resultado terapêutico. Isso promove a autonomia das pessoas sobre seu próprio processo de cura.

Por se tratar de uma terapia que dá suporte ao processo natural de autorregulação do sistema nervoso, os resultados se destacam quanto, ao tempo de resposta, a profundidade e a generalização dos resultados alcançados. 

Sobre a formação em Brainspotting e a Bolsa de Estudos:

A Formação em Brainspotting é sistematizada no mundo todo a partir das diretrizes da Brainspotting Training Inc. No Brasil, uma das pessoas autorizadas para oferecer esse treinamento é Daniel Gabarra. Ele é graduado em psicologia pela UFSCar e sempre se preocupou com o compromisso social da psicologia. Devido a isso, foi oferecida a Bolsa de Estudos para a formação em Brainspotting, a fim de permitir o acesso dessa metodologia a populações que tradicionalmente não teriam. 

Inicialmente, a bolsa era oferecida apenas a profissionais da psicologia vinculados ao SUS, SUAS e ONGs, mas em 2020 ela foi ampliada para psicólogos negros, transsexuais, indígenas, entre outras populações que historicamente vivenciam a negação de seus direitos sociais1.

(nota de rodapé 1 do tipo parar sobre o 1 e aparecer o texto.) Para saber mais acerca do programa de bolsas, acesse: https://danielgabarra.com.br/bolsa

Relato de Experiência:

Serão utilizados os registros feitos pela profissional em atendimentos realizados pelo Instituto Psicologia Para Todos, entidade sem fins lucrativos que atende pessoas em vulnerabilidade econômica e social em Serra/ES. As frases entre aspas ora são da psicóloga, ora da paciente.

A paciente, Ana Júlia (nome fictício), tem 55 anos, é moradora de um bairro da periferia, casada há 38 anos e mãe de duas filhas, uma com 34 e outra com 32 anos de idade. Ela trabalha como atendente de farmácia de um município vizinho, e exerce essa atividade em desvio de função, já que foi contratada pela empresa de serviços de limpeza como copeira.

O primeiro encontro foi realizado no Plantão Psicológico online. Neste momento, ela relatou que tem “um quadro de depressão há mais de 30 anos, logo após o nascimento da primeira filha. Começou a ter tonturas, dores de cabeça e no corpo, além de nervosismo” . Na ocasião, ela foi levada para a Santa Casa de Misericórdia de Vitória/ES, tendo sido atendida por vários médicos no pronto atendimento. Segundo ela, “foi encaminhada para o neurologista e em seguida para um psiquiatra, sendo diagnosticada com depressão crônica”. Ela contou que fez tratamento psicoterápico com diversos profissionais, que não percebia resultado e que, portanto, tinha interrompido tudo. 

A paciente relatou usar as seguintes medicações: Clonazepam, Amitriptilina e Nortriptilina. Ela disse que “usou 17 tipos de medicações, não lembrando dos nomes, mas afirma que eram muitos e foram diminuindo com o tempo”.

Durante essa escuta inicial, ela se apresentou como uma pessoa bem humorada, com autocuidado e higiene preservados. Seu discurso, bem articulado, foi marcado por um tom depreciativo sobre si e sua vida. Repetiu várias vezes que não era capaz e que não conseguia:  “tudo é difícil comigo, nada dá certo, não vai mudar” . Mesmo que em um tom de brincadeira, ela usou várias vezes tais termos, enquanto falava e meneava a cabeça como quem está negando.

Sobre as relações familiares, mantendo o mesmo tom, falou positivamente apenas da relação com as filhas, pontuando categoricamente: “pelo menos isso, né?”. Deixou claro a sua descrença em mudanças significativas na sua vida e nas pessoas ao pontuar que quando casou, “achou que a vida seria diferente, porém, mesmo hoje que o esposo não bebe mais, nem  joga, ela acredita que ele, na verdade, não mudou. Ele é assim porque ele está doente” .

Foi investigado se ela sofreu maus-tratos pelos pais na infância e no casamento. Ela relatou que foi maltratada pelos pais e pelo marido, “que mentia muito, se envolvia com jogos, trazendo dificuldades para família e muitas discussões, assim como ciúmes”. A paciente negou ter sofrido agressões físicas e confirmou ter vivido agressões verbais e psicológicas constantes. Ao contar sobre isso, a paciente disse “sentir muitas dores e uma angústia que não tem explicação”. 

A terapeuta interveio com as questões “A sua vida é muito ruim? Não há nada de bom? Seu relacionamento com suas filhas é ruim?”, com o objetivo de fortalecer os aspectos positivos e de mudança relatados durante a sessão. A paciente foi encaminhada do plantão para um atendimento regular com a mesma profissional e orientada a fazer exercícios de respiração como técnica de relaxamento.

No segundo atendimento, a paciente, ao responder como tinha sido sua semana, utilizou uma frase negativa em um tom de brincadeira: “tudo é muito difícil doutora, lidar com as pessoas, confiar, isso dói muito, minha vida é só sofrimento”. Nesse momento, foi sugerido o processamento em Brainspotting, no qual a psicóloga questionou em que parte do corpo a paciente sentia essas dores, ao que Ana Júlia responde: “no corpo todo”. Ela falava gesticulando e agitando muito braços e pernas.

Foi utilizado o manejo de Brainspotting de Janela interna, que propõe para o cliente identificar, com o auxílio do terapeuta, uma direção dos olhos em seu campo visual com a qual o foco ou queixa (dor e sofrimentos) e a sensação corporal (dor no corpo todo) se intensificam, o que é denominado brainspot ou posição ocular relevante. 

Esse processo visou favorecer a sustentação do foco na queixa, a fim de potencializar a auto varredura do cérebro-corpo e, com isso, auxiliar a regulação afetiva da rede de memória em foco. Também buscou-se como referência o nível de ativação da queixa, ou seja, o quanto ela se sentia mobilizada com a questão em uma escala de zero a dez, na qual zero é nenhuma mobilização/ativação e dez, a máxima que ela pode imaginar. Essa escala é uma adaptação da SUDS (Subjective Units of Distress Scale, em tradução livre: Escala de Unidades Subjetivas de Desconforto), proposta por Joseph Wolpe.

Ana Júlia relatou ter uma SUDS inicial de valor 10 e estava muito agitada ao começar o processamento. Falou que a culpa era dela: “eu sou complicada mesmo, não consigo”. Nesse momento, foi feita uma intervenção da terapeuta: “porque que é tão importante acreditar que você é difícil?”. Depois, a seguinte fala com o objetivo de psicoeducação: “permita que as lembranças, pensamentos, coisas que você ouviu… não é porque você ouviu isso muitas vezes… que é uma verdade absoluta, e que você pode mudar isso se quiser. Acolha o que vier nesse momento, seja gentil com você, abrace você mesma. Sinta-se acolhida nesse momento”.

A partir desse momento, a paciente entrou em um processamento mais profundo, com longos momentos de silêncio e, com isso, pôde-se observar que a agitação foi diminuindo. Ela continuou balançando a cabeça, como foi descrito na primeira sessão, mas foi possível perceber, aos poucos, um relaxamento do tônus do ombro e da postura da cabeça. Com passar do tempo, o corpo estava com uma postura diferente e mais relaxada. Nesse momento, a terapeuta verificou o valor de SUDS e perguntou o quanto a questão ainda mobilizava a cliente, que respondeu que estava em sete. Foi então sugerido que a paciente continuasse com olhar para aquele brainspot e “acolhesse o que viesse naquele momento”. 

Ao se aproximarem do do final da sessão, a paciente foi questionada novamente quanto ao valor de SUDS. Respondeu que era três e, com isso, foi proposta uma técnica de respiração em conjunto com a continuidade do manejo de Brainspotting de Janela Interna. Após um tempo observando as mudanças no tônus muscular, na diminuição do menear da cabeça e na respiração, a terapeuta verificou novamente quanto isso a mobilizava a paciente, que respondeu “que não, que naquele momento ela estava tranquila, não havia nada” .

A sessão foi finalizada e foi explicado à paciente que se ela sentisse “alguma coisa”,  poderia ficar à vontade para contatar a terapeuta. Foi avaliado neste momento se a paciente estava bem para o fechamento da sessão, e ela “falou com tranquilidade que no início foi muito difícil, mas que se sentia bem, sem entrar em detalhes” .

Na terceira sessão, a paciente já apresentava uma postura muito diferente ao ser questionada se a semana havia sido boa. Ela falou que “as pessoas em casa e no trabalho estão comentando que ela estava diferente. Será, doutora?”. Ao ser perguntada sobre o que ela achava, falou que “não sabia, que era tudo muito difícil… que a vida é muito difícil” .

Disse que tinha algo muito importante para falar, “uma lembrança, que ela teve durante a semana, de algo que aconteceu na infância e que ela nunca havia falado com ninguém, mas que precisava falar… e sentia um desejo incontrolável de falar sobre isso” . A terapeuta explicou que “às vezes essas coisas acontecem, às vezes as lembranças não vêm na sessão, mas depois”. Então, ela relatou que “no dia seguinte à sessão teve muita dor de cabeça pela manhã, mas que a dor foi diminuindo ao longo do dia e que tinha sido a melhor semana  sua vida”. 

Continuou contando sobre uma tentativa  de abuso na infância. Ao relatar essas lembranças, ficou muito agitada e se emocionou, ficando com os olhos vermelhos e chorando. Ana Júlia foi acolhida pela terapeuta, que lhe disse “que não tinha sido culpa dela, que o comportamento do tio… a responsabilidade pelo comportamento de um adulto é sempre do adulto, nunca da criança, e que aquele comportamento não tinha a ver com ela” . 

A paciente se estabilizou e passou a contar sobre sua vivência com os pais e os irmãos, que também a agrediram física e verbalmente: “eu apanhava por tudo, tudo era responsabilidade minha, tudo era minha culpa”. Falou de suas dificuldades de aprendizagem e de como isso era utilizado como motivo para apanhar sempre, e relatou que apanhava por “qualquer outra coisa”. Disse que era uma pessoa difícil. “Como confiar nas pessoas, mesmo nos irmãos? Quando casei, esperava que seria diferente a vida, o que não aconteceu”.

Foi questionado à paciente onde ela percebia essa desconfiança e insegurança no corpo. Disse que “mobilizava muito, fazendo com que sentisse um peso muito grande nos ombros, mas também outras partes do corpo”. Questionada sobre o valor de SUDS, respondeu que 10. Nesse processamento, foi possível perceber uma mudança significativa desde o início. Em vez de falar “quanto era difícil”, só perguntou “será que consigo?”. Ao longo do processo, diminuiu o menear da cabeça, o que sugeriu que estava mais relaxada. Ana Júlia pareceu mais entregue ao processamento, pois iniciou com um valor de SUDS dez e terminou com um zero. O valor zero persistiu mesmo quando lhe foi solicitado que entrasse em contato com qualquer mobilização que a questão ainda pudesse provocar nela. Ao final da sessão, ela disse que “foi muito bom, diferente da outra vez. Acho que é muito bom poder falar com alguém dos problemas e do que aconteceu”.

Nos quarto e quinto atendimentos, foram realizados novos processamentos com Brainspotting, tendo como foco o sentimento de culpa da paciente. Sempre latente em seus relatos, esse sentimento foi trabalhado no contexto de suas preocupações relacionadas à família, principalmente a sua irmã, que estava doente e que não podia, então, exercer o papel que costumava fazer de cuidadora da mãe delas.

No sexto atendimento, a paciente parecia bastante animada. Contou espontaneamente sobre suas mudanças, relatando que foi à consulta com a psiquiatra e que a médica observou diferença entre um atendimento e outro, como não precisar da ajuda da filha para falar, pois não chorava mais. A dosagem da medicação foi reduzida pela psiquiatra. 

Ana Júlia reforçou como as pessoas do trabalho e da família continuavam percebendo essa diferença. Durante o atendimento, a paciente foi menos enfática ao citar sua incapacidade, sugerindo uma mudança no padrão de comportamento, “de se julgar uma pessoa difícil, de que tudo é sua culpa e é que as coisas não mudam ou são quase impossíveis de mudar”. A paciente falou de medo, insegurança, desconfiança dos outros e de si mesma, entre outros sentimentos e comportamentos. 

 O manejo em Brainspotting, ao propor autorregulação a partir da sintonia dual, potencializado pela posição ocular relevante, fortaleceu a aliança terapêutica estabelecendo a confiança necessária para o relato da memória traumática. A paciente chegou a afirmar que “desde a primeira vez, se sentia mais leve e conseguia falar de coisas que ela nunca havia falado para ninguém, e como é bom fazer esse processamento sem precisar falar”. 

A paciente continua sendo atendida pelo Instituto Psicologia Para Todos e, apesar de apresentar um quadro que sugere humor rebaixado, tem se apresentado bem humorada durantes as sessões, com insights positivos em relação a si e comportamentos mais adaptativos. Ela relatou que estar grata pelo atendimento, que passou ter confiança no processo psicoterápico, e que estava satisfeita com o atendimento.

Alessandra de Freitas Dias de Jesus atua como Psicóloga Clínica, Terapeuta em Brainspotting; MBA em Serviço Social e Políticas Públicas pela Faculdade Cândido Mendes; Pós-Graduada em Saúde Coletiva pela FAVENI; Fundadora do Instituto Psicologia Para Todos, uma ONG criada em 2017 com finalidade de tornar acessível o atendimento psicológico às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social; Atuou durante 2 anos e meio na Secretaria de justiça do Estado do Espírito Santo (SEJUS). Hoje, além do atendimento clínico no Consultório e no Instituto, é Servidora Pública (DT), atuando no CRAS do Município da Serra-ES. 

Daniel Gabarra é especialmente um eterno aprendiz e acredita na melhora e cura tanto do sujeito quanto da humanidade. Nesse caminho ele se tornou Trainer em Brainspotting e PNL, Supervisor e Facilitador de EMDR, Especialista em Psicodrama, Terapeuta de AIM e constelação, flerta com Ayurveda e é graduado em Psicologia pela UFSCar.Tiago Noel Ribeiro é psicoterapeuta. Atuou quase 10 anos em serviços públicos de saúde, atualmente se dedica a clínica e a pesquisa de doutorado.